15 novembro 2011

FACE OCULTA - VEJA AS DFERENÇAS





Estrela Serrano fez um micro ensaio que, no fundo, radiografa a sociedade que somos: BPN e Face Oculta: veja as diferenças
Esta matéria pede uma sumária introdução: a ideia de que a corrupção é generalizada tem não apenas anos e décadas, antes séculos e milénios. Desde que há registos escritos que podemos ler escribas a queixarem-se do seu tempo presente, o qual constatam estar cheio de maleitas e sofrimentos, e a bendizer um qualquer passado mais ou menos distante onde tudo teria corrido às mil maravilhas e a malta era feliz ou, no mínimo, teria vergonha na cara. Por isso se fantasiaram idades de ouro nos antanhos, paraísos perdidos, Atlântidas afundadas, Shambhalas no cu de Judas. Enfim, as saudades da infância são uma característica antropologicamente universal em todos os tempos e lugares. Se os animais falassem língua de gente, não diriam outra coisa.
A problemática da corrupção em Portugal também não poderá ser tratada olvidando a existência dos cafés. É que basta frequentar esses antros de cafeína e duvidosa pastelaria para sermos inelutavelmente doutrinados acerca da tipologia e extensão da corrupção pátria. Até se revelam à boca cheia de migalhas as percentagens que os patos-bravos têm de pagar aos fiscais das câmaras para que os projectos avancem sem demoras (é o mesmo valor de Norte a Sul, está tabelado). Esta corrupção é entendida como uma taxa, mais uma, e ninguém denuncia ninguém sob pena de ficar com as obras futuras entaladas no marasmo burocrático que existe precisamente para justificar a tal taxa por baixo da Lei e do imposto. Do mesmo modo, as pequenas corrupções que vão das cunhas para empregos a cunhas para intervenções clínicas, passando pelas cunhas para as cunhas, são vistas como a natureza das coisas que ninguém considerado adulto é suposto contrariar se quiser tratar da sua vidinha. Há, pois, razoáveis expectativas de que aquilo que é ensinamento corrente nos tascos seja igualmente do conhecimento das polícias, das autoridades, dos deputados, dos governantes, da maioria dos padres e até de um ou outro Presidente da República.
Saltemos para Aveiro. A oligarquia adora vinganças palacianas. É uma cena bué antiga, doença hereditária que ataca a hemoglobina e transforma o sangue num líquido viscoso em tons de azul-noja. Ora, a perda do BCP tinha de ser vingada, e Vara era o alvo mais fácil, porque mais exposto profissionalmente, e ainda o mais apetecível, porque íntimo de Sócrates. Por outro lado, Sócrates tinha de cair de qualquer maneira, tratava-se de uma questão visceral para os clãs que chafurdavam na impotência ao não conseguir quebrá-lo. Que fazer? Por exemplo, escolher um alvo que permitisse escutar Vara na certeza de que se iria conseguir escutar um primeiro-ministro sem o berbicacho de obter autorização para tal. Manuel Godinho, um empresário entre dezenas ou centenas com perfis idênticos de negócios com o Estado, com a vantagem metafórica de operar no ramo da sucata, prestava-se a ser o alvo perfeito. Quem é que no seu estado mental normal não admitiria que esta figura já teria untado as mãos a este e àquele para conseguir fazer os seus negócios? Dada a rede de cafés no território nacional, a que devemos juntar os táxis para acabar de vez com as dúvidas, Manuel Godinho seria considerado culpado no exacto momento em que aparecesse como suspeito. E, por arrasto, quem tivesse negociado com ele não se livraria da sujidade. Mais: conseguir levar o caso para a fase de investigação, mesmo que não chegasse aos tribunais, seria suficiente para encher os jornais honestos com excertos cuidadosamente seleccionados por magistrados impolutos. Claro, se existisse munição para ir tribunal – algo com alta probabilidade de acontecer, seja por matéria de facto ou ambiguidade suficiente nas provas – isso seria o sucesso completo, pois os envolvidos nunca mais se livrariam das marcas do ordálio. A jogada era brilhante nisso de ser uma instrumentalização da Justiça que deixaria os seus operacionais completamente imunes a qualquer represália. Apenas tropeçou na integridade do Procurador-Geral da República e na do Presidente do Supremo.
Que estamos perante um inaudita conspiração prova-o o aproveitamento desbragado da direita partidária com o rafeiro apoio da imbecil extrema-esquerda – chegando ao ponto de se conspurcar o Parlamento com vexantes comissões de inquérito – e, antes e acima de tudo, as decisões e declarações de Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento a exporem a golpada. Tão mais contrastante fica, então, o silenciamento à volta do caso BPN. Não que essa ausência de violações do segredo de justiça, ou de sensacionalismos canalhas, seja de lamentar, absolutamente pelo contrário. Mas, tal como faz Estrela Serrano, temos a obrigação política, quiçá o dever cívico, de nos interrogarmos acerca da radical diferença de tratamento para os dois casos. De um lado, suposta corrupção supostamente usual de suposta pequena monta e assassinatos de carácter para efeitos de luta pelo poder. Do outro, evidentes crimes financeiros de uma dimensão cujo único adjectivo apropriado é este: colossal. De um lado figuras do PS, do outro figuras do PSD. Aqui uma comunicação social nas mãos da direita mais facciosa ou oportunista, ali uma esquerda sem voz jornalística capaz de se fazer ouvir e de desmontar as pulhices que assolam o espaço público como praga bíblica.
Contudo, há uma dimensão onde a diferença de tratamento para os dois casos atinge uma ainda maior relevância. É, precisamente, nos cafés. Enquanto as notícias dos robalos deixam a multidão a ulular, salivando os maiores impropérios contra a malandragem dos políticos por atacado com Sócrates como esponja dos ódios de uma nação de miseráveis, as notícias a respeito de la vida loca em Puerto Rico apenas despertam uns tristes sorrisos encolhidos. E nisto, nesta cumplicidade passiva para uns e alarve perseguição para outros, está a mais profunda herança do salazarismo, pujante como há 40, 60 e 80 anos: o medo dos senhores do dinheiro

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