JOSÉ SÓCRATES, OS MERCADOS, ETC.
REMBRANDT Auto-retrato, 1630 |
Na actual conjuntura televisiva, quando ouvimos a palavra "mercados" já quase nada nem ninguém faz a pergunta básica de comunicação. A saber: de que estamos a falar? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 de Novembro), com o título 'Por que não mostram os "mercados"?'.
Vivemos numa cultura visual dominada pela ideologia televisiva. Todos os dias, tal ideologia quer fazer-nos acreditar que as imagens podem mostrar “tudo” e, mais do que isso, que é possível ir à procura de “todas” as imagens. No limite, para dar conta de um crime passional que ocorreu num terreno baldio, a televisão é capaz de mandar um operador filmar a pedra em que o morto bateu com a cabeça, explicando, em off, o modo como a vítima caiu desamparada deixando um rasto de sangue nas ervas...
O “ver tudo/mostrar tudo” é, afinal, um dispositivo de elaborados recalcamentos. Porquê? Porque é também uma cultura do que apenas se nomeia, recusando pensar que imagens poderão (ou poderiam) existir para o dar a ver. Exemplos? Muitos, a começar pela “justiça” dos resultados do futebol... Quando será que nos mostram o tribunal mandatado para a sua aplicação? Nos últimos tempos, o exemplo mais gritante é o dos já célebres “mercados”. A sua designação entrou mesmo na gíria social, sem que ninguém pergunte: de que falamos quando falamos de “mercados”?
Nada disto põe em causa o reconhecimento da nossa grave conjuntura. E apesar de as televisões não ajudarem muito, os portugueses têm aprendido à sua custa que a demonização de um nome (“José Sócrates”, por exemplo) não basta para resolver problemas (mesmo que quem quer que seja possa, legitimamente, considerar que a respectiva governação foi um desastre). Vivemos sob o jugo de uma informação do visível que não reflecte sobre a visibilidade das “coisas” que nomeia.
Numa notável entrevista de Jean-Luc Godard [foto], concedida a Paulo Branco e apresentada no recente Lisbon & Estoril Film Festival, o cineasta de Pedro o Louco e A Nossa Música descreve os “mercados” como sendo os nossos “dragões”: vivemos circundados por um sistema de fábulas informativas cuja única função parece ser a de gerar medos mais ou menos irracionais. Por um lado, não se discute esse poder visceral do dinheiro moderno: o de sustentar relações de compra e venda quando a sua existência já passou por inteiro para o lado do imaginário financeiro. Por outro lado, a repetição incessante da palavra “mercados” apenas serve para instilar no cidadão um cansaço niilista: nada do que possa fazer tem qualquer pertinência no universo assombrado das relações humanas.
Tudo isto, convém referir, no mesmo universo em que os feiticeiros e dragões de Harry Potter são promovidos como a suprema forma de libertação das nossas crianças... Não admira, por isso, que esta ideologia da agitação pela agitação (sempre fascinada por quem parta alguma coisa no meio da rua) ignore o simples facto humano que Godard também recorda. A saber: os “mercados”, a indústria, o cinema ou a televisão são sempre... homens e mulheres. O amor também. Mas para isso temos as telenovelas, essa conspiração audiovisual apostada em fazer-nos crer que o amor é o supremo ridículo.
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