16 fevereiro 2012

POVOS E CIRCUNSTÂNCIAS




Rapto de Europa – Gustave More

Europa é nome de mulher. Mas, curiosamente, Europa não era europeia. Europa, a mulher por quem Zeus se encantou, era uma princesa fenícia, ou seja, da região do Líbano. O que significa que Europa era, na verdade, asiática. Além de mulher e estrangeira, Europa foi violada e sequestrada, e trazida para a ilha de Creta.
Foi desta história pré-moderna (que parece pós-moderna) que nasceu a ideia de Europa. Nasceu na Grécia, em grego, mas olhando o continente a partir de fora. Só assim poderia ser. Certamente que as tribos que nessa altura povoavam o centro do continente não se perguntavam que coisa era a Europa, nem sequer se existia. Só para os navegantes do levante, que estavam na encruzilhada entre três continentes, fazia sentido dizer “ali é da banda da Ásia”, “ali é da banda de África” e “aqui é a Europa”.
De cada vez que ouço alguém dizer “nós não somos a Grécia”, agora penso — “e é por isso que não somos europeus”. Claro que nós não somos gregos, nem estónios, nem bávaros. Isso é tão claro que, em geral, não precisaríamos de o dizer. A insistência, a obsessão em não ser “como os gregos” quer apenas dizer que os europeus já não se reconhecem uns aos outros.
Ainda há poucos anos, dizia-se que tínhamos aqui um belo continente, com alto nível de desenvolvimento económico e social. A Europa é uma ilha de prosperidade, ouvia-se dizer aos mercadores de banalidades, que para nos distinguir dos outros (dos “árabes”, dos “muçulmanos”) insistiam na nossa herança comum helénico-romana e judaico-cristã. Supostamente, éramos todos cristãos e ocidentais e portanto nada podia correr mal: o sucesso estava na nossa cultura. Agora, os mesmos mercadores de banalidades dizem que a Grécia é “incapaz de se reformar” ou que não tem uma “cultura de eficácia”.
Todos os dias ouço ou leio uma nova explicação culturalista para explicar por que não deveria a Grécia ter entrado no euro. No fundo, os gregos não estavam preparados, ou tinham uma deficiência qualquer congénita, deve ser isso. O que me assusta nestas explicações mal amanhas e inventadas à pressa é como elas são desculpas para evitar ver tudo o que estava errado no desenho do euro.
Diz-se que o euro não deveria ter sido feito para “economias tão diferentes” incluindo as daqueles depreciados países que não conseguem crescer. Esquece-se, em primeiro lugar, que nenhuma moeda tem que ser feita para economias que são todas iguais: o dólar não serve à bolsa de Nova Iorque e aos campos do Alabama? o real não serve às empresas de São Paulo e aos vendedores ambulantes da Amazónia? Em segundo lugar, evita-se pensar que uma razão por que não crescem estes depreciados países como Portugal e a Grécia é talvez porque o euro, da maneira que está, não os deixa crescer.
Assim como está, é mais fácil lançar as culpas nos gregos — por serem como são. E nós, portugueses, jogamos esse jogo. Até um dia, surpreendidos, virmos que nos dizem o mesmo.
Ora nem os gregos, nem os portugueses, nem os alemães “são como são”. Todos os povos são eles e as suas circunstâncias.
É por isso que, nas circunstâncias atuais, deveríamos dizer: sim, somos como os gregos. E nós e os gregos somos tão europeus como os alemães. Sim, é verdade: temos uma dívida insustentável. A dívida é nossa, portuguesa; mas o problema é nosso, europeu, e só nesses termos europeus se pode resolver. Que fique bem claro: não há maneira de nos tirar do euro nem de nos expulsar da União.
Rui Tavares

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