01 fevereiro 2012

SEXO DOS ANJOS


Agora que o n.º 110, relativo a Fevereiro, chegou às bancas e livrarias, deixo aqui a crónica
 O Sexo dos Anjos, publicada no n.º 109 na minha coluna Heterodoxias:Ouvi há dias na televisão o Jorge Silva Melo dizer que a literatura portuguesa tinha desistido da realidade. Para ser exacto, ele não usou o verbo desistir. O que ele disse foi mais ou menos isto: «A ficção portuguesa tem dificuldade em lidar com a realidade, mas isso não era assim nos anos 50 ou nos anos 60, quando qualquer escritor, até um escritor menor como o Fernando Namora, ansiava encontrar-se com temas presentes.» Antes de concluir, «agora passa-se tudo nas memórias coloniais ou no D. João V...», deu como exemplo Domingo à Tarde (1961), romance com acção centrada no Instituto Português de Oncologia, onde Namora, que era médico, trabalhava.O documentário de João Osório em que Silva Melo fez estas considerações era sobre o efeito da sida na arte: literatura, poesia, música, bailado, pintura, fotografia, cinema, teatro.
Trinta anos passados sobre a descoberta do VIH, em Junho de 1981, é revelador que a representação da sida na literatura portuguesa seja praticamente nula. O défice de real traduz o quê? Conflito com a realidade? Eugenia corporativa? Provincianismo?

Sou capaz de perceber que autores formados à sombra do Estado Novo (os que nasceram antes de 1950) tenham relutância em falar de um vírus de que tiveram conhecimento jornalístico na meia idade. Mas os mais novos, os que cresceram com a progressão da síndrome da imunodeficiência adquirida (nunca o termo work in progress foi tão certeiro), preservativo no bolso desde a puberdade, mesmo esses, aos costumes dizem nada. Viciados em residências de escrita criativa, para quê chafurdar na realidade?

Como não há regra sem excepção, lembro o romance de estreia de Pedro Vieira
, Última paragem, Massamá (Quetzal, 2011). As febres e suores de Lucas podem não ser decisivas na arquitectura do livro, mas a história que Vieira conta não passa ao lado da realidade. Camelot fica muito longe da rua da Imprensa Nacional.

Ao invés, no Brasil, autores de primeiro plano andam há mais de vinte anos a estabelecer um nexo entre sida e literatura. Por exemplo, Herbert Daniel (1946-1992), desconhecido em Portugal, embora aqui tenha feito estudos de medicina ao mesmo tempo que trabalhava como free lance journalist numa revista feminina. Entre outros romances, Herbert publicou Alegres e Irresponsáveis Abacaxis Americanos (1987), pondo em pauta a discriminação ideológica dos seropositivos. Antes disso já havia escrito e publicado inúmeros ensaios sobre o tema, mas agora estamos a falar de literatura.Não era a primeira vez que o público brasileiro se via confrontado com a sida. Isso aconteceu logo em 1983, quando Caio Fernando Abreu (1948-1996) publicou a novela Pela Noite, considerado o primeiro texto ficcional brasileiro sobre o VIH. A partir de 1991, Pela Noite passou a fazer parte do volume Triângulo das Águas. Em obras posteriores, o discurso será explicitado com maior veemência: «Cuidado comigo, eu sou a dama que mata, boy

Contista admirável, gaúcho acarinhado pela intelligentzia paulista, Caio está hoje publicado numa dúzia de países excepto em Portugal. Não se percebe. Livros como Morangos Mofados (1982), Os Dragões não Conhecem o Paraíso (1988), Onde Andará Dulce Veiga? (1990) e Ovelhas Negras (1995; ao lado dos últimos, inclui alguns dos primeiros contos do autor), para citar apenas os meus preferidos, são do melhor que a literatura de língua portuguesa tem produzido.

Sem pretender ser exaustivo, chamaria ainda a atenção para
Uma História de Família (1992), romance de Silviano Santiago, bem como para dois contos de Bernardo Carvalho inseridos em Aberração (1993).

E nós por cá? Nós por cá escrevemos sobre o sexo dos anjos, um tema sempre actual, ou, como diz Silva Melo, presente.

 by Eduardo Pitta  url

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