08 abril 2009

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA E AS REGIÕES AUTÓNOMAS

PORQUE PERTURBAM ESTA IMENSA PAZ?
Portugal é um Estado unitário, que «respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular», nos termos do artigo 6º da Constituição.
Esta solução constitucional, pela qual já por diversas vezes manifestei o meu apreço, é, sem dúvida, a que melhor corresponde à natureza do Estado português, à configuração do nosso território e aos legítimos direitos e interesses das populações insulares. Ao fim de trinta anos, o regime autonómico afirmou-se como uma das mais frutuosas realizações da nossa democracia, tendo contribuído decisivamente para o progresso económico e social dos Açores e da Madeira.
As competências que a Lei Fundamental atribui ao Presidente da República no que se refere às Regiões Autónomas correspondem à marcação das eleições dos deputados às Assembleias Legislativas, ao envio de mensagens a tais Assembleias e, bem assim, à sua dissolução, a qual, nos termos da Constituição, é feita após audição do Conselho de Estado e dos partidos com representação parlamentar regional.
Compete ainda ao Presidente da República, ouvido o Governo, nomear e exonerar os Representantes da República para as Regiões Autónomas, cabendo a estes a representação da República em cada uma das regiões insulares, não sendo por acaso que a Constituição lhes atribui o poder de assinar e mandar publicar os decretos legislativos regionais e os decretos regulamentares regionais. Relativamente a estes diplomas, é ao Representante da República que compete a respectiva assinatura, o envio para fiscalização preventiva por parte do Tribunal Constitucional ou o exercício do veto político.
A Constituição determina ainda que os órgãos de soberania cooperem com os órgãos de governo próprio, designadamente em domínios que se inscrevem, por natureza, na esfera de competência do Governo, enquanto órgão responsável pela condução da política geral do País. Esse dever de cooperação recíproca, nos termos constitucionais, incide particularmente no desenvolvimento económico e social das Regiões Autónomas e visa, em especial, a correcção das desigualdades resultantes da insularidade. A Lei Fundamental impõe, por conseguinte, que, entre os órgãos de soberania e os órgãos de governo próprio, existam, mais do que meras relações institucionais, relações de cooperação com vista a um objectivo específico: o desenvolvimento económico e social dos Açores e da Madeira.
Neste contexto, cabe sobretudo ao Presidente da República exercer a sua magistratura de influência para que se estabeleça um clima propício à cooperação entre os executivos da República e das Regiões.
Ao longo do meu mandato, tenho procurado que entre os órgãos da República e os órgãos regionais exista um diálogo leal e construtivo e um ambiente favorável a um salutar relacionamento institucional, e que as especificidades das Regiões sejam devidamente tidas em conta. Desloquei me aos Açores e à Madeira, onde tive oportunidade de contactar com as populações insulares, e, por diversas ocasiões, procurei que melhorasse o diálogo entre o poder central e as Regiões. Estas devem ser respeitadas na sua autonomia político-administrativa, tal como devem saber respeitar o princípio fundamental da unidade do Estado. Todos têm a perder com a existência de conflitos entre soberania e autonomia.
Entendo, por outro lado, que o dever de isenção e imparcialidade no tratamento das diversas forças partidárias, que assumo no plano nacional, se estende também aos partidos representados nas Assembleias dos Açores e da Madeira. Neste pressuposto, deve o Presidente da República abster-se de alimentar polémicas ou comentar declarações de agentes políticos proferidas no âmbito do combate partidário próprio da democracia.
Considero ainda que o Presidente da República, do mesmo modo que não deve interferir na organização e funcionamento interno dos demais órgãos de soberania, não pode imiscuir-se na organização e no funcionamento interno dos órgãos regionais. Compete-lhe, no uso da sua magistratura de influência, contribuir para atenuar crispações excessivas ou para ultrapassar situações anómalas, devendo, em princípio, fazê-lo com discrição e, em primeiro lugar, por intermédio dos Representantes da República, a quem cabe o acompanhamento da situação política em cada uma das Regiões, mantendo devidamente informado o Presidente da República.
No ano de 2008, um acontecimento marcou, de forma profunda, o futuro das Regiões Autónomas, bem como a configuração do Estado português como Estado unitário parcialmente regionalizado. Refiro-me, naturalmente, à aprovação da revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores. Estou convicto de que, no processo conducente à aprovação daquele diploma, o que esteve em causa possui um alcance que, muito provavelmente, só o futuro permitirá descortinar em todas as suas implicações. Entendi, por isso, que a questão justificava que os Portugueses dela tivessem o mais amplo conhecimento.
Foi nesse contexto que decidi fazer, no dia 31 de Julho, uma comunicação ao País sobre a revisão do Estatuto Político-Administrativo dos Açores. Desde o início, foi para mim muito claro o que estava em causa. Não era uma questão de maior ou menor apreço pela autonomia das regiões insulares. E não era, também, uma questão que se relacionasse directamente com o titular do cargo de Presidente da República. O que estava em causa, como disse aos Portugueses, era o princípio de confiança e de lealdade política e ins-titucional que deve reger as relações entre os órgãos de soberania. Esta é uma questão que se situa num plano muito distinto do plano da apreciação da constitucionalidade das normas estatutárias.
Refiro-me, muito concretamente, à regra que impõe ao Presidente da República que, para dissolver a Assembleia Legislativa dos Açores, proceda à audição de um conjunto de entidades mais vasto do que aquele que tem de ouvir quando decide dissolver a Assembleia da República, solução que se me afigura absurda. Independentemente de saber se essa solução, além de absurda, é também inconstitucional, existe um elemento anterior que, em meu entender, não é politicamente admissível: um órgão de soberania não deve, através de uma lei ordinária, limitar ou condicionar o exercício dos poderes de outro órgão de soberania, nem deve, tão-pouco, interpretar a Constituição no que se refere ao exercício dos poderes de outro órgão de soberania.
Esta é, como já referi, uma questão de confiança e de lealdade institucional, sem a qual o normal funcionamento das regras básicas do jogo democrático é comprometido e pervertido. Trata-se de um princípio essencial, válido quer no que se refere às competências do Presidente, quer às de qualquer outro órgão de soberania, sem prejuízo das particularidades constitucionais de cada um.
No caso em apreço, não estava em causa, repito, uma defesa dos poderes do Presidente da República, tanto mais que a norma em questão, relativa à dissolução da Assembleia Legislativa da Região, é de aplicabilidade muito remota. Em trinta anos de autonomia regional, jamais a Assembleia dos Açores foi dissolvida e não existem motivos para supor que tal aconteça no futuro próximo.
Antes de se configurar como uma questão jurídico-constitucional, trata se de uma questão de respeito pelos valores fundamentais da República, que são válidos para todos e quaisquer órgãos do Estado. Se a Assembleia da República, por exemplo, decidisse limitar ou condicionar o modo como o Governo exercesse os seus poderes constitucionais, tal princípio seria igualmente posto em causa. E, mesmo que tal solução normativa não fosse necessariamente inconstitucional, sempre seria atentatória daquilo que, em meu entender, corresponde a um dos fundamentos basilares da nossa democracia: a lealdade institucional no contexto do equilíbrio entre poderes soberanos do Estado.
Uma outra norma do Estatuto dos Açores mereceu a minha oposição. Refere-se ela à autolimitação de poderes que os actuais Deputados introduziram naquele diploma. Decidiram os Deputados, mesmo depois de o Presidente da República ter vetado politicamente o diploma que revia o Estatuto, que, doravante, em futuras alterações do Estatuto, apenas poderão modificar os preceitos que a Assembleia Regional entender deverem ser modificados. Num processo de revisão estatutária, cuja abertura compete ao parlamento regional, ficam, pois, os Deputados claramente limitados no exercício de um poder que a Constituição lhes atribui: o poder de aprovar as leis da República. Não é, para mim, compreensível que os Deputados hajam decidido hipotecar desta forma tão drástica a liberdade de acção dos seus sucessores.
A questão, uma vez mais, é essencialmente uma questão de princípio. Neste caso, o que se me afigura inadmissível, tal como encaro a estrutura do Estado português e o funcionamento dos seus órgãos soberanos, é a possibilidade de, por lei ordinária, os membros de um Parlamento limitarem os poderes dos Deputados vindouros. Na verdade, como a iniciativa de revisão estatutária cabe às Assembleias Regionais, e como os Deputados passaram agora a poder intervir apenas nas matérias que essas Assembleias decidirem que sejam revistas, o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores passou a adquirir um elevadíssimo grau de rigidez, quiçá, até, superior ao da própria Constituição da República, algo que se me afigura um manifesto absurdo. De futuro, a margem de actuação dos Deputados de legislaturas subsequentes fica comprometida – porventura, definitivamente comprometida – por uma opção conjuntural dos Deputados da actual legislatura, opção que, para mais, ficou a dever-se a razões de natureza puramente partidária.
Ao contrário do que se pretendeu fazer crer, entendo que o que esteve em causa foi muito mais importante do que uma questão de relacionamento entre os Deputados à Assembleia da República e o Presidente da República. Os titulares dos cargos são efémeros e transitórios. O mesmo se não dirá dos valores basilares que fundaram a nossa democracia e sustentam o seu funcionamento. Esses, não tenho dúvidas, foram claramente postos em causa, independentemente de qualquer juízo que se faça sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das normas do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
Em todo este processo, procurei pautar o meu comportamento por duas regras: colocar o superior interesse nacional acima de tudo e falar verdade aos Portugueses, fazendo-os compreender o alcance e a gravidade desta questão política e institucional.

COMENTÁRIO OPORTUNO DA "Barbearia do senhor Luis":

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