22 dezembro 2010

O MONSTRO VERDE DA PAIXÃO

Sentimento de posse ou de inveja? Insegurança ou noção das realidades? Conheça as vias sinuosas desta dor ou raiva nem sempre contida.Dá-se-lhe o nome de ciúme...
Depois de mais uma zanga interminável com o namorado por causa de ciúmes, ficou sozinha e, até hoje, não voltou a envolver-se com mais ninguém. Susana recorda que “foi um olhar. Estávamos a tomar café, numa esplanada. Uma rapariga bonita passou, disse-lhe olá, sorriu e ele correspondeu”. O pior é que ele jurou a pés juntos e até ao fim “que não conhecia a outra de lado nenhum”. Susana explodiu. Não foi a primeira vez, mas… foi a última. A discussão continuou em casa, com pratos partidos e jarras caídas. Os amigos de ambos ressalvam que “ela é muito ciumenta”. Susana defende-se: “Ele sabe que eu reajo assim por amor. Em vez de ter deixado passar uns dias, e tudo voltava a ficar bem, duas semanas depois da nossa zanga já tinha outra.” Por amor, Susana e as amigas conhecem quem vá para as discotecas de cigarro em punho, estrategicamente escondido na concha da mão, pronto a “fazer estragos se for preciso”. Escutam-se estas histórias uma e outra e outra vez e não se acredita. Pessoas de educação diferenciada, com níveis de escolaridade muito acima do mínimo obrigatório, ostentam em termos afectivos um primarismo assustador. Outros, “por amor”, partem muitas vezes para a agressão. Ou para a perseguição implacável.
De que se fala quando se fala de ciúmes? Miguel Garcia Pimenta, psicólogo, psicoterapeuta, investigador de perturbações da personalidade e problemas relacionais, explica: “O ciúme é uma emoção universal. Diversas comunidades já tentaram erradicar o sentimento de posse nas relações amorosas, com base em regras e códigos de comportamento de tal forma rígidos que se tornaram eles próprios restrições violentas à liberdade individual. O resultado foi que se registaram múltiplos exemplos de insucesso na erradicação do ciúme amoroso nestas comunidades. Isto aponta para a sua universalidade e para o valor adaptativo do ciúme para a espécie humana.” E acrescenta que nas culturas em que aparentemente se transcendeu o sentimento de ciúme “existem provavelmente outras compensações de carácter pessoal que permitem ultrapassar este sentimento”. Para o psicoterapeuta, o ciúme como emoção complexa ter-se-ia desenvolvido a partir do sentimento de inveja, presente desde que a criança atinge “um estádio e individuação suficiente para perceber necessidades insatisfeitas e os cuidadores como tendo o poder de satisfazer essas necessidades”. Ou seja, é uma resposta de defesa que “visa garantir a proximidade dos cuidadores” num quadro em que a “necessidade de estabelecer relações seguras e de exclusividade seria um bom garante da sobrevivência”.
Estamos perante uma resposta natural ou instintiva, em termos de sobrevivência. Mas que arco de recorrência se estabelece entre o bebé que precisa da atenção dos pais para não morrer e criaturas que picam com “agulhas invisíveis” ou queimam “com pontas de cigarro escondidas” hipotéticos rivais? Como enquadrar as cenas “de faca e alguidar” nas suas várias declinações que culminam, no extremo, na própria faca? Miguel Pimenta distingue “estádios de dependência” e a sua evolução natural, num quadro em que o processo de crescimento assinala, quando tudo corre bem, a passagem para um estádio de autonomia “no qual a satisfação das necessidades e aspirações não se encontra dependente da relação exclusiva com um objecto de amor”.O indivíduo não só estabelece múltiplas relações de interdependência, como consegue garantir o seu próprio sustento emocional. A partir desse ponto, é capaz de lutar pelas coisas que lhe são queridas, de ser zeloso do que é seu, mas com desapego e sem medo de perder”. Neste quadro, o psicoterapeuta frisa que é bom lembrar a origem etimológica da palavra ciúme, que “vem do latim zelumen e do grego zelos”. Mas o que acontece no ciúme patológico é que o indivíduo não consegue fazer um compromisso com a realidade e abdicar da necessidade de uma relação exclusiva. E é aqui que entram os comportamentos que muitos defendem como “naturais” e até como necessários.

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