10 janeiro 2009

UMA ANÁLISE ATENTA E ESCLARECIDA DE MIGUEL SOUSA TAVARES SOBRE A SITUAÇÃO DE PORTUGAL

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Os fins de ano servem para balanços e tentações de mudança, as crises servem para os corajosos crescerem e os fracos se afundarem. 2008 foi um mau ano, o ano em que a crise chegou, mais uma vez matando as esperanças nascentes de um futuro próximo de paz e de crescimento. 2009 é o ano em que, sem subterfúgios, vai ser preciso pegar o mal de frente, reagir ou ser arrastado sem remissão.
Estamos, miseravelmente, à mercê de outros: não dependemos só de nós para resistir com êxito. Esta é uma má base de partida, mas pior ainda, aquilo que acentua o meu pessimismo, é constatar que, no que depende de nós, estamos longe, longíssimo, de dar sinais que entendemos: que entendemos o que aí vem e que entendemos o que é necessário fazer. Obcecado com o desemprego - que, de facto, a explodir, mergulhará o país no caos social - Sócrates lançou-se, sem hesitar, num programa de obras públicas, cuja grande maioria, não tendo o combate ao desemprego como justificação, seria simplesmente perdulária e absolutamente inútil - como o será no futuro, passada a urgência. Não precisamos de mais auto-estradas para um Interior cada vez mais despovoado por ausência de verdadeiras políticas de ocupação do território; não precisamos de um TGV para Madrid que já todos sabem que terá uma exploração deficitária; e, como eu sempre disse, está à vista que, pelo menos nos tempos mais próximos, não precisamos de um novo aeroporto em Lisboa, quando a ANA anda desesperadamente a fazer saldos de slots para atrair companhias low-cost para a Portela. Mas, não havendo tempo ou coragem para outra coisa, venham daí as obras públicas e o dinheiro dos contribuintes!
O mesmo desconhecimento do que aí vem e a mesma falta de tempo para pensar friamente, levou Sócrates e Teixeira dos Santos a atravessarem-se em auxílio de bancos de vão de escada, cuja simples certidão de óbito seria mais salutar e mais económica. A ânsia de acorrer com dinheiros ou avales públicos a todos os lugares onde há fogo, não deve, todavia, enganar-nos: o país não descobriu subitamente petróleo e alguém há-de ter de pagar a factura. Já somos um país alarmantemente endividado e as dívidas pagam-se com impostos e com o sacrifício das gerações seguintes. Não sei se um bom pai não deve começar a preparar os filhos para emigrarem, quando chegarem à idade de entrar no mercado de trabalho. Assim, quando vierem de visita à pátria, poderão usufruir dos aeroportos, TGV e auto-estradas, sem terem de se matar a trabalhar para as pagar.
Mas isso é apenas uma das coisas que nos devem preocupar e, se calhar, nem é agora a principal. Mais importante do que os erros eventualmente cometidos hoje sob pressão dos acontecimentos, é a sensação de que, milhões e milhões gastos a tentar manter-nos apenas à tona de água, não se traduzirão em nenhuma mudança essencial, que nos garanta a viabilidade do país, uma vez ultrapassada a crise mundial. Este tem sido, indiscutivelmente, o Governo que mais tentou reformar o que precisava de ser reformado, mexer nos famosos 'direitos adquiridos' das corporações que vegetam à custa do Estado e que são o factor primeiro para o nosso eterno subdesenvolvimento. Sócrates tem esse mérito, o mérito de o ter tentado, sozinho e contra todos. Mas, assim, não podia vencer e não venceu.
Vieira da Silva, talvez o melhor ministro deste Governo, conseguiu levar a cabo provavelmente a única reforma conseguida e essencial: a do financiamento da Segurança Social, que evitou que, num horizonte de não mais do que dez ou quinze anos, não houvesse dinheiro para pagar pensões a ninguém
. Mas falhou na ténue revisão da legislação laboral, que os sindicatos e o PCP combateram por todas as formas. Agora, por exemplo, o Tribunal Constitucional veio declarar a inconstitucionalidade da norma que previa o alargamento do período experimental de 90 para 180 dias, antes da passagem de um trabalhador a efectivo. Orgulhosamente, o TC defendeu os princípios do "direito ao trabalho" e da "segurança laboral", tão caros à nossa patética Constituição. Magnífico! E saberão os excelentíssimos juízes quais serão as consequências disso, num momento em que, no mundo inteiro, as empresas despedem e fecham, porque a economia estagnou e não há trocas nem o dinheiro circula? As consequências é que haverá ainda menos empresas a admitir trabalhadores ou, as que o fizerem, findo o período de 90 dias, despedem-nos ou passam-nos a recibo verde - sem direito a Segurança Social, férias, pagamento de horas extraordinárias ou quaisquer outras regalias de que beneficiam os privilegiados que, como os juízes, têm emprego certo e garantido para toda a vida e salários pagos religiosamente no final de cada mês.
Oiço também Manuel Carvalho da Silva (que tenho por pessoa séria e preparada) anunciar um ano de luta dos "trabalhadores" em defesa do aumento de salários e pensões, porque, sem isso, diz ele, a crise não será ultrapassada. Ora, ele não ignora que, com isso, é que a crise explodirá, com mais e mais empresas a falirem e mais e mais trabalhadores e famílias lançadas para o desemprego. E quando se sabe que este ano, e em resultado da crise, não há inflação a comer salários - pelo contrário, o perigo é a deflação e o desemprego - a sua proposta só pode visar uma política de terra queimada. Não por acaso, em ano de eleições.
A política de reformas e a própria necessidade de cerrar fileiras para enfrentar os tempos difíceis que aí vêm encontram pela frente uma grandiosa e organizada resistência de vários interesses contraditórios confluentes: a cartilha leninista do PCP, seguida à letra pelos sindicatos que lhe prestam obediência, num quadro político que hoje é verdadeiramente terceiro-mundista; a resistência tenaz de todas e cada uma das corporações em aceitar abrir mão de privilégios imorais e insustentáveis para o país; a cumplicidade activa de um corpo judicial que ignora como funciona o país real e que protege das reformas tentadas todas as outras corporações, com receio de que finalmente chegue a sua vez; a atitude acrítica de muita imprensa que adora a rua e o conflito como fonte de notícia e a quem os sindicatos e as corporações servem prestimosamente variadíssimas photo-oportunities e motivos de primeira página; e, enfim, a absoluta falta de sentido de Estado das oposições e, em particular, do PSD, que não resistem à mentalidade de que quanto mais complicada for a vida do governo melhor é para eles. Todos partilham da crença suicida de que pior do que tudo é o país poder tornar-se governável e alterarem-se coisa que são um adquirido nacional: termos a saúde mais cara do mundo, o maior e mais inútil desperdício de dinheiros públicos numa Educação que não funciona, uma Justiça que se arrasta em autocontemplação incapaz de cumprir o essencial daquilo que justifica a sua existência, uma produtividade laboral que é sistematicamente das mais baixas da Europa e que parece querer assim justificar uma economia com lugar para salários indecentes e livres tropelias do capital.
Numa notável entrevista ao último número do "Sol", Eduardo Barroso explica de forma arrasadora como é que as reformas tentadas pelo ex-ministro da Saúde, Correia de Campos, eram essenciais para melhorar o serviço e conter gastos. E como é que elas foram derrotadas "por pressão da rua e da imprensa". O mesmo destino terão grande parte das reformas tentadas por Maria de Lurdes Rodrigues na Educação. Não porque não tenha razão, mas precisamente porque a tem. Mas isso é o pior que pode acontecer a alguém em Portugal: ter razão contra os interesses instalados.


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